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Ao abrir o pano a cena está às escuras. Uma única personagem,
intensamente iluminada, encontra-se à frente e ao centro do palco. o popular
que deu início ao primeiro acto.
O segundo acto começa precisamente como o primeiro. Os actores devem
ocupar no início deste acto as mesmas posições que ocupavam no primeiro, a
fim de os espectadores compreenderem não se tratar esta semelhança dum
acidente ocasional.
Manuel - Que posso eu fazer? Sim, que posso eu fazer?
(Dá dois passos em direcção ao fundo do palco. Detém-se)
Sempre que há uma esperança os tambores abafam-lhe a voz...
Sempre que alguém grita os sinos tocam a rebate...
(Pausa)
E cai-nos tudo em cima: o rei, a Polícia, a fome...
(Levanta os braços ao alto)
Até Deus!
(Deixa cair os braços num gesto de desânimo)
E ficamos pior do que estávamos... Se tínhamos fome e esperança, ficamos
só com fome... Se, durante uns tempos, acreditámos em nós próprios, voltamos
a não acreditar em nada...
(Num tom de voz humilde e trémulo)
Uma esmola por alma de quem lá tem, meu senhor... Também sou
homem, também tenho fome, filhos que queria ver homens, olhos para ver o
luar, voz para dizer o que sinto, costas que morro a vergar... Uma esmola por
alma de quem lá tem, senhor...
(Estende a mão. Num gesto brusco toma a posição do indivíduo a quem estava a
falar. Assume uma atitude nobre. Torna-se duro e ríspido)
Tome lá cinco réis, homenzinho, e cale-se. Não me toque! Estenda a mão...
vá! E deixe-se de lamúrias! Não preciso que me ensine os meus deveres de
cristão; eu amo o próximo como a mim mesmo.
(Faz o gesto de quem deixa cair uma moeda na mão dum pobre)
Afaste-se! Deixe-me passar.
(Dum salto volta à sua posição inicial, estende a mão e adopta, novamente, o tom
de voz anterior)
Muito obrigado, meu senhor!
(Faz uma vénia)
Muito obrigado, meu senhor, pelo favor de me amardes como a vós
mesmo.
(Finge examinar a moeda imaginária que acaba de receber)
No Dia de Juízo, Deus Nosso Senhor levar-vos-á em conta estes cinco
réis...
(Faz uma nova vénia e fica todo inclinado para a frente, seguindo com os olhos a
personagem imaginária que se afasta. Por fim, endireita-se e fica parado, no palco, em
atitude de meditação)
Esta madrugada prendem Gomes Freire... Levaram-no, escoltado, para
São Julião da Barra. Já de lá não sai vivo!
(Para o palco)
Que mais sabem vocês da prisão do general?
Ilumina-se o fundo do palco, que se encontra repleto de gente do povo disposta
exactamente como para a cena de abertura do 1º acto.
1º Popular - Do general?
(Ri-se)
Homem, vossemecê anda arrasado!
2º Popular - Passaram toda a noite a prender gente por essa cidade...
3º Popular (Falando da outra extremidade do palco) – Os quartéis ainda estão
de prevenção, e lá para os lados do Rato são mais os soldados do que as
pedras...
O Antigo Soldado (Visivelmente acabrunhado) - Prenderam o general...Para
nós, a noite ainda ficou mais escura...
1º Popular - É por pouco tempo, amigo. Espera pelo clarão das fogueiras...
O tom é profético e a voz triste.
O Antigo Soldado - E agora?
A pergunta deve ficar como que suspensa no espaço durante uns segundos de
forma a que a entrada dos Polícia pareça responder-lhe.
(Ninguém responde. Pela direita do palco entram dois Polícias)
1º Polícia (Como que espantado por ver tanta gente reunida) - Olhem para isto!
Perderam a alma. Dir-se-ia que a prisão de Gomes Freire lhes tirou a
vontade de viver.
Já a caminho de sair do palco.
2º Polícia - Daqui para fora! Vá: todos daqui para fora! Então vocês não
sabem que estão proibidos os ajuntamentos?
(O povo levanta-se e começa a abandonar o palco sem pressa.)
Manuel - Ajuntamentos só nas cadeias, não é?
1º Polícia - Toca a andar, e nada de perguntas!
1º Popular - Posso dormir com a minha mulher ou também formamos um
ajuntamento?
2º Polícia (Para o colega) - Não lhe respondas!
(Para o povo)
Andar e depressa, ou vão ver o que lhes acontece!
(Saem todos, uns pela direita e outros pela esquerda.
A iluminação do fundo desaparece gradualmente. Manuel e Rita ficam para trás e
conversam à frente e ao centro do palco.)
Manuel - E eu na descarga das barcaças, todo o dia sem saber de nada!
Rita (Relata o facto) com certa emoção - Eu vi o general sair de casa.
Arrombaram-lhe as portas e nem lhe deram tempo a vestir-se. Só
conseguiu calçar as botas à saída.
(Pausa)
Há desespero e revolta no tom de voz de Rita.
A mulher ficou a chorar até de manhã. Passei-lhe à porta e ouvi-a soluçar.
Deu-me vontade de fugir, de largar a correr por essas ruas fora e de me
deitar ao Tejo!
(Dum salto agarra-se ao pescoço do marido)
O gesto é espontâneo e ditado por um impulso súbito que Manuel mostra
compreender passando a mão pelos, cabelos da mulher.
Nunca te metas nestas coisas, Manuel! Haja o que houver nunca te metas
com eles. Prefiro ver-te com fome, a perder-te.
(Pausa)
Como ela chorava, santo Deus! Parecia um animal ferido a ganir à beira
duma estrada...
(Entra o 1º Polícia.)
1º Polícia - Então? Não ouviram as minhas ordens?
(O Polícia sai. Rita e Manuel seguem-no.)
Rita - Parece que ainda a estou a ouvir...
(Rita sai. Surge, a meio do palco, intensamente iluminada e sentada numa cadeira
tosca, Matilde de Melo - uma mulher de meia-idade, vestida de negro e desgrenhada.)
Matilde - Ensina-se-lhes que sejam valentes, para um dia virem a ser
julgados por covardes! Ensina-se-lhes que sejam justos, para viverem num
mundo em que reina a injustiça!
Ensina-se-lhes que sejam leais, para que a lealdade, um dia, os leve à forca!
(Levanta-se)
Não seria mais humano, mais honesto, ensiná-los, de pequeninos, a
viverem em paz com a hipocrisia do mundo?
(Pausa)
Quem é mais feliz: o que luta por uma vida digna e acaba na forca, ou o
que vive em paz com a sua inconsciência e acaba respeitado por todos?
(Encaminha-se para uma cómoda velha que surge, iluminada, à sua esquerda)
Fala com rancor.
Se o meu filho fosse vivo, havia de fazer dele um homem de bem, desses
que vão ao teatro e a tudo assistem, com sorrisos alarves, fingindo nada terem a
ver com o que se passa em cena!
(Pausa)
Fala com determinação.
Havia de lhe ensinar...
Está a mentir, a cuidar mais da bolsa do que da alma.
A tentar convencer-se do facto que da consciência e a si mesma.
(Abre uma gaveta da cómoda e tira dela um uniforme velho de Gomes Freire)
Se o meu filho fosse vivo... Havia de morrer de velhice e de gordura, com
a consciência tranquila e o peito a abarrotar de medalhas!
(Coloca o uniforme de Gomes Freire sobre a cadeira)
Tudo isso o meu homem poderia ter tido...
(Acaricia o uniforme)
Se tivesse sido menos homem...
(Pausa)
Podíamos estar, agora, aqui, ouvindo os pregões que soam a cantigas, lá
fora, na rua...
(Pausa)
Abríamos a janela ao sol da manhã e aquecíamo-nos os dois...
(Pausa)
Ele dava-me a mão, eu dava-lhe a minha, e ficávamos, para aqui, a
conversar...
Falávamos das batalhas em que ele andou...
Relembrávamos o nosso hotel de Paris... os passeios que dávamos ao
longo do Sena... os dias felizes que vivemos juntos... o tempo em que
sonhávamos voltar a esta malfadada terra...
(Passa a mão pelo uniforme com ternura)
Podíamos viver aqui esquecidos dessa gente que odeia.
(Encaminha-se para a esquerda do palco)
Era tão fácil... Tão mais fácil que tudo isto...
(Faz o gesto de fechar uma janela)
Fechávamos as janelas. Trancávamos a porta. Era como se estivéssemos
outra vez lá fora, longe das intrigas mesquinhas em que esta gente se perde e
perde a vida...
(Pausa)
Mas não pôde ser e, agora, estou sozinha. Sozinha e rodeada de inimigos
numa terra hostil a tudo o que é grande, numa terra onde se cortam as árvores
para que não façam sombra aos arbustos...
(Começa a chorar)
Tenho o corpo no Rato e a alma em São Julião da Barra, mas enquanto
houver vida nestas pernas cansadas... e força nestas mãos que Deus me deu...
(Endireita-se. Parece crescer no palco)
Enquanto tiver voz para gritar... Baterei a todas as portas, clamarei por
toda a parte, mendigarei, se for preciso, a vida daquele a quem devo a minha!
(Cai de joelhos, com os braços em torno da cadeira e, soluçando, enterra a cabeça
no uniforme de Gomes Freire. Pela esquerda do palco surge António de Sousa Falcão.)
O desânimo de António é evidente. Pode exteriorizar-se pelos ombros descaídos e
pelos braços pendentes.
Sousa Falcão - A sua vida inteira foi uma conspiração permanente contra
o que esta gente representa!
Matilde - Deus não permitirá que lhe façam mal!
Sousa Falcão - Deus!? Esta gente concebeu um Deus à sua imagem e
semelhança!...
O Deus deste Reino é um fidalgo respeitável que trata como amigo a
Pôncio Pilatos.
(Caminha em direcção a Matilde)
Vive num solar brasonado e dá esmolas, ao domingo, por amor de Deus.
(Estaca junto de Matilde)
Anda tão habituado a pisar tapetes, que lhe inchariam os pés se tivesse de
voltar às estradas da Galileia! O Deus deste Reino...
Matilde, não quer ouvir falar de Deus, e quando alguém lhe pergunta como se
perdeu pelo caminho, entra em explicações tão profundas e tão complicadas, que só ele as
entende...
Matilde (Levantando-se) - Então, António, terei de recorrer aos homens.
Sousa Falcão - Neste Reino, os homens fizeram Deus à sua imagem e
semelhança e, depois, fizeram-se à imagem e semelhança desse Deus.
Matilde - Hão-de ouvir-me!
Sousa Falcão - Eles só têm ouvidos para a sua própria voz!
(Matilde dirige-se à cómoda e, enquanto fala, tira duma gaveta um xaile que põe à
volta dos ombros.)
Matilde - Serei, então, a voz da sua consciência. Ninguém consegue viver
sem ouvir a voz da consciência, António.
Sousa Falcão - E eu vou saber dele. Ainda que sem esperança, vou fingir
que a tenho. Isso devo-lhe a ele e devo-me a mim. Vamos.
Matilde (Apoiando-se no braço de Sousa Falcão) - Que estará ele fazendo a
esta hora, fechado numa cela em São Julião da Barra? Adivinho-lhe os gestos e
os pensamentos.
Está preocupado por minha causa.
Sabe que nunca o deixei sozinho e a maior das suas dores é o
conhecimento que tem da minha dor.
Sousa Falcão (Com ternura) - Todos somos chamados, pelo menos uma
vez, a desempenhar um papel que nos supera. É nesse momento que
justificamos o resto da vida, perdida no desempenho de pequenos papéis
indignos do que somos. Chegou a nossa hora, Matilde.
Vamos.
(Avançam para a frente do palco enquanto desaparece gradualmente a luz que
iluminava a cómoda e a cadeira. A meio caminho, António de Sousa Falcão afasta-se e
sai pela esquerda. Matilde fica isolada ao centro, e à frente do palco.)
Não há nada de heróico neste monólogo de Matilde.
Todo ele é triste, dolorosamente triste.
Matilde - Na esteira do meu homem percorri, sozinha, metade das
estradas da Europa, e nunca me senti tão só como hoje...
Quero defender tudo o que tenho e não sei por onde hei-de começar...
O destino de todas as mulheres. Temos um filho, queremos superar-nos
através dele, fazer que ele seja alguém e não sabemos por onde começar...
(Pausa)
Chega-nos o homem a casa, farto das batalhas do dia-a-dia, cansado de
morrer aos poucos
Fala com simplicidade.
- queremos vê-lo renascer, chegar a nossa ternura ao fundo do seu
coração, e não sabemos por onde começar...
(Pausa)
Despertamos a meio da noite, damos com o nosso homem, acordado, com
os olhos postos sabe-se lá em quê, queremos dar-lhe a mão, ver o que ele vê, e
não sabemos por onde começar...
(Pausa)
Um dia, encontramos o nosso homem a sonhar um outro mundo -
sabemos que esse sonho põe termo à paz que tanto desejamos, e, mesmo assim,
queremos dizer-lhe que siga o seu caminho, que iremos com ele até ao fim, mas
não sabemos por onde começar... Mas é preciso começar! estivesse eu em São
Julião da Barra, e já ele teria dado a vida por mim.
(Pausa)
Vou enfrentá-los. É o que faria se aqui estivesse e quem sabe? - talvez
Deus oiça. Ele há-de ouvir alguém.
(Sente-se que toma uma decisão. Lentamente, num gesto ponderado, vira-se para o
palco)
William Beresford!
O nome é proferido em tom de quem chama pelo marechal.
(Beresford surge, de braços cruzados, ao fundo e à direita do palco)
Apresenta-se com simplicidade, mas com orgulho. Sabe que Beresford odeia Gomes
Freire e, embora isso a não impeça de o procurar, não deseja que Gomes Freire saia
humilhado desta conversa.
Sou Matilde de Melo, natural de Seia, uma terra tão pobre e tão pequena
que o senhor, decerto, nunca ouviu falar dela. Fui criada entre árvores e
penhascos, naquela pobreza que os ricos designam por santa e que os pobres
amaldiçoam. Ensinaram-me, de pequena, a amar a Deus sobre todas as coisas.
(Pausa)
Foi-me fácil fazê-lo, não por ter aprendido a grandeza de Deus, mas por
me ter apercebido da pequenez das coisas.
(Pausa)
Fui crescendo. Tornei-me mulher, casei e quase morri.
Com esta pausa, Matilde separa nitidamente os dois períodos da sua vida.
Fala rapidamente, com entusiasmo.
aperreada entre paredes sem janelas donde se visse o mundo.
(Pausa)
Cheguei a crer que o mundo era a minha aldeia, que Deus era irmão d'elrei e que as más colheitas eram consequência dos pecados humanos...
(Pausa)
Um dia entrou um homem na minha vida. Entrou de tal forma, senhor,
que tomou posse dela. À minha volta começaram a ruir paredes. As coisas, tal
como ele as via e mas mostrava, começaram, de repente, a perder a sua
pequenez e cheguei a Deus, senhor, cheguei a Deus, por compreender a
grandeza da sua obra!
(Pausa)
Dei-lhe tudo o que tinha: o corpo, que apesar de esposado estava mais
seco do que um poço no fim do Verão, a alma, que, de tão aperreada, nunca
chegara a desabrochar. Vivi com ele os anos mais felizes da minha vida.
Olhando para trás, parece-me que nunca conheci outro viver.
Se alguém teve tudo, esse alguém fui eu.
(Pausa)
Sou a mulher do general Gomes Freire d'Andrade.
Beresford nem toma o país nem as suas instituições a sério e o seu tom é
permanentemente zombeteiro.
Beresford - E que pretende de mim?
Matilde - O que a sua mulher pretenderia, se o amasse, e se o senhor fosse
preso na sua terra por um português promovido a comandante supremo do
exército britânico.
Beresford (Francamente irónico) - Parece-lhe verosímil tal hipótese?
Matilde - Mentiria se lhe respondesse afirmativamente. Os homens,
porém, não se podem medir pela força dos exércitos que servem, mas pelos
motivos que os levam a servi-los. O meu homem nunca quis saber quantos
soldados tinha atrás de si, e, se alguma vez olhou para trás, foi apenas para me
ver.
Estas afirmações são proferidas em tom de desafio. até porque não correspondem à
verdade. Matilde, ao fazê-las, está a desafiar a sua própria consciência.
Beresford (Trocista)
O facto de ser procurado por Matilde diverte o Marechal
Vem, então, pedir-me clemência?
Matilde - Venho pedir-lhe que o liberte. É-me indiferente que o faça por
favor, por clemência ou por qualquer outro motivo.
Às mulheres, senhor, pouco interessa a justiça das causas que levam os
seus homens a afastar-se delas. A injustiça e a tirania, só as sente quem anda na
rua, quem é homem ou quer ser homem.
(Pausa)
Que me importa, a mim, que o rei seja tirano e o país miserável e mal
governado?
Que me importa que as cadeias estejam cheias, o exército por pagar e o
povo a morrer de fome?
(Pausa)
O inimigo de Beresford é sempre, e só, Gomes Freire. Se o conseguir
humilhar através da mulher, tanto melhor.
Matilde - Quero o meu homem! Quero o meu homem aqui, ao meu lado!
Quero acabar os meus dias em paz!
(Pausa)
As mulheres, Sr. Marechal, estão sempre dispostas a colaborar com a
tirania para conservarem os maridos em casa.
(Pausa)
Se não fosse o que lhe digo, já não haveria reis por essa Europa fora...
Beresford (Rindo-se) - O que diria o general Gomes Freire se a ouvisse
falar?
Matilde (Envergonhada) - Prefiro não saber.
Beresford - Vende-lhe, assim, a honra para o salvar?
Matilde - É a minha que vendo e não a dele.
Beresford - E porque pensa que devo fazer o que pede?
Matilde - Porque é o comandante do exército, governador do Reino e...
porque sabe que ele não cometeu qualquer crime.
Beresford - A simples existência de certos homens é já um crime.
(Começam a ouvir-se sinos ao longe.)
Matilde (Exaltada) - Porque dizem a verdade? Porque vêem para além da
cortina de hipocrisia com que os poderosos escondem a defesa dos seus
interesses?
(O ruído dos sinos aumenta de intensidade.)
Beresford (Sorrindo) - Porque... são incómodos, minha senhora!
Matilde (Com amargura) - É incómodo todo aquele que não confunde a
vontade de Deus com a vontade do rei...
(Pausa)
Ou que vê para além das medalhas que usais no peito...
(Pausa)
Ou que olha para vós de frente, e sorri...
Beresford (Com ironia) - Ou que, devendo, por nascimento e posição,
defender certos interesses, defende outros... o caso do general, minha senhora.
(Ouve-se, fora do palco, o murmúrio de vozes humanas.)
Matilde - Que vão fazer dele, Sr. Marechal?
Beresford (Abrindo os braços para exprimir a sua impossibilidade de responder à
pergunta) - Julgá-lo e... fazer justiça!
Matilde (Com desespero e como quem pensa pela primeira vez na hipótese) -
Querem matá-lo! diga-me, Sr. Marechal, por amor de Deus diga-me: querem
matá-lo?
(As vozes aproximam-se do palco. Ouve-se, nitidamente, falar latim.)
Beresford - Ninguém lhe pode responder a essa pergunta. São os
acontecimentos que geram os acontecimentos e...
(Entra no palco um padre seguido dum sacristão tocando uma campainha e de
alguns populares.
Começa a juntar-se gente à sua volta.)
Matilde (Exaltadíssima) - Não o matem, Sr. Marechal! Mandem-no para a
guerra, deixem-no morrer como um homem, batendo-se com os inimigos que
possa reconhecer!
(Levanta os braços ao céu)
Senhor, se te lembras da cruz, permite que o meu homem morra de cabeça
levantada! Não vos peço nada para mim. Mais: troco a minha vida pela dele!
Fazei-me sofrer, matai-me torcida de dores e abandonada de todos, mas, a
ele, dai-lhe uma morte que o não mate de vergonha!
Padre (Lendo um papel) - Ordem dos principais da Patriarcal de Lisboa para
acções de graças pela descoberta da conjuração Nas Primari Presbiteri, Et
Diaconi Sanctae Lisbonensis Ecclesiae Principales Sede Patriarchali Vacante.
Tendo chegado ao nosso conhecimento, com indubitável certeza, que
houve insensatos tão temerários e atrevidos que ousaram formar o louco e
detestável projecto de estabelecer um governo revolucionário conhecendo que
todo o bem nos vem de Deus, sejam quais forem os meios de que para isso se
sirva, claro fica que a Ele devemos dirigir as nossas acções de graças. E por isso
havemos por bem ordenar:
(Entram mais populares que se colocam entre Matilde de Melo e Beresford,
escondendo este último)
Que no dia domingo, em todas as paróquias deste Patriarcado e igrejas
dos Conventos Regulares, se cante ou reze donde se não pode cantar, depois da
hora de Noa, a missa votiva de Nossa Senhora, Pro Gratiorum Actione,
ajuntando-lhe, no fim, o hino Te Deum Laudamus com o Santíssimo
Sacramento exposto; dizendo-se, igualmente, neste dia, em todas as missas, a
oração pro Gratiorum Actione.
Matilde - Mas eles ainda não foram julgados! Que espécie de Deus é o
vosso que condena antes de ouvir? Que gente sois, senhores, que Reino é este
em que tive a triste sorte de nascer? Sr. Marechal: quanto vale, para vós, a vida
dum homem?
(O padre, sempre seguido do sacristão tocando uma campainha, afasta-se e sai pela
esquerda, enquanto os populares se sentam em círculo no chão e começam a comer.
Beresford responde, já de fora do palco.)
Beresford - De que homem, minha senhora?
Matilde - De qualquer homem.
Beresford - Depende do seu peso, da sua influência, das vantagens ou dos
inconvenientes que, para mim, resultem da sua morte.
Neste diálogo, os populares parecem exprimir uma indiferença total perante os
acontecimentos. Embora mais tarde esta impressão seja corrigida, aqui deve ser realçada
pela lentidão com que as frases são proferidas e pelos intervalos que as separam. Sentese, mesmo, que as frases são deliberadamente proferidas para que Matilde as oiça.
Matilde - E nada mais?
Beresford - Não há mais nada a con siderar, minha senhora.
(Matilde cobre a cara com as mãos.)
1º popular - Em dias de missa solene, as igrejas enchem-se de uma gente
rica.
2º Popular (Relembrando-se) - Na Páscoa, à porta da Sé, fiz o bastante para
comer durante três dias.
(Matilde descobre o rosto, e observa os populares e, num gesto resoluto,
aproxima-se deles)
Matilde - Alguém aqui me conhece?
Matilde tenta levar o povo a reagir.
(Aponta para um)
Você, aí, sabe quem eu sou. Tenho-lhe dado esmola vezes sem conta.
(O popular a que Matilde se refere levanta-se)
Nunca me bateu à porta que não levasse do que eu tinha em casa.
(Aponta-lhe para as pernas)
Essas calças que traz vestidas, reconheço-as, fui eu que lhas dei. Eram do
general Gomes Freire d'Andrade.
(De pé, em silêncio e com as mãos estendidas, o popular observa as suas calças)
Usava-as por casa, em Paris. Ainda há pouco tempo me perguntou por
elas...
(Durante uns instantes ninguém fala)
Sabem o que lhe aconteceu? Sabem que está em São Julião da Barra,
metido numa cela... Não sabem? Pois deviam sabê-lo!
Os populares recomeçam a conversar como se não tivessem ouvido Matilde. A
trivialidade do diálogo é nitidamente constatada até pela lentidão com que são proferidas
as palavras.
Eram vocês que o aplaudiam, na rua, quando ele passava... Eram vocês
que lhe perguntavam... “Então, meu general, quando é que isto vira?”
Agora pergunto-lhes eu: “quando é que isto vira?” Por quantotempo é que
o vão deixar metido numa masmorra, perdendo aos poucos a fé que tinha na
gente desta terra?
(Ninguém responde durante uns segundos.)
1º Popular - João: passa aí essa faca.
2º Popular (Passando-lhe uma faca com que o outro corta uma fatia de pão) -
Está cheia de ferrugem. Não a limpo há mais dum mês.
1º Popular - Para o pão, serve.
O Antigo Soldado (Espreguiçando-se) - São horas de me ir indo. Por onde
andam as patrulhas? Alguém sabe?
2º Popular - Para os lados do Rato.
Vai pelas quintas, que ninguém dá contigo.
O desespero de Matilde perante a atitude dos populares é evidente.
Matilde - Ninguém me ouve? Estarão cegos e surdos para não
compreenderem o que se passa à vossa volta?
1º Popular (Dando uma notícia importante de que se esquecera)
Mais uma vez se revela a intenção de ignorar a presença de Matilde
Só agora me lembro duma notícia que os vai espantar. E em que não vão
acreditar!
(Ri-se)
O Vicente, lembram-se do Vicente? Foi feito chefe de Polícia. Vi-o, hoje,
fardado, seguido por dois esbirros! É verdade! Juro-lhes que é verdade! Olhou
para mim como se nunca me tivesse visto. Estendi-lhe a mão e deu-me uma
cacetada na cabeça!
2º Popular - Era mesmo ele?
1º Popular - Era ele, digo-lhes eu. Nunca me esqueço duma cara.
(Matilde, profundamente desanimada, começa a afastar-se do grupo e aproxima-se
da esquerda do palco.)
Manuel, agora, mostra que tinha consciência da presença de Matilde e que o seu
silêncio foi premeditado, como premeditada foi a sua quebra neste momento.
Manuel - Não é de espantar. Deus escreve torto por linhas direitas. Não é
assim que se devia dizer?
(Matilde, chorando, vai a sair pela esquerda do palco quando Manuel a chama,
sem voltar a cabeça e sem fazer um gesto)
Senhora!
(Matilde estaca e volta-se para o grupo sem saber, ao certo, se a chamaram)
É consigo, senhora.
(Sempre sem voltar a cabeça e limpando a faca enquanto fala)
É, portanto, essencial que não esboce, sequer, o gesto de se virar para ela.
- Não se vá, assim, embora, sem levar resposta.
(Matilde volta a aproximar-se do grupo, que finge não dar por ela. Os seus passos
são curtos e tímidos.
Não sabe porque a chamaram. Manuel prossegue, agora para Rita)
Arranja aí um caixote para ela, Rita.
(Rita levanta-se dum salto, vai buscar um caixote que coloca junto de Matilde e
ajuda-a a sentar-se, falando ao mesmo tempo.)
Rita - Desde aquela noite que só penso em si. Estava lá na rua quando
prenderam o general. Vi-o sair de casa...
Depois passei lá à porta e ouvi-a chorar... Até contei ao meu homem...
Antes de se sentar, Rita hesita e olha para Manuel como que a pedir-lhe desculpa
de ter falado a Matilde.
(Matilde, sentada, esconde o rosto nas mãos. Rita volta a sentar-se.)
Manuel (Levanta-se e fala com ternura) - Todos, aqui, sabemos quem a
senhora é, e nenhum de nós é cego ou surdo...
(Observa-a com atenção)
Há quanto tempo não come, minha senhora?
(Matilde encolhe os ombros. Manuel mete a mão num saco, procura qualquer coisa
que não encontra e olha para os outros. Um deles levanta-se e, com uma maçã na mão,
aproxima-se de Matilde)
Coma essa maçã, Sr.a Dona Matilde. Verá que lhe faz bem.
(Matilde recusa a maçã)
Perguntou-nos, há pouco, o que íamos fazer para libertar o general...
Insinuou mesmo que éramos responsáveis pela sua prisão, já que
tínhamos fé nele...
Olhe para nós, Sr.a Dona Matilde. Abra bem os olhos e veja quem somos e
ao que estamos reduzidos.
(Chega ao pé dum velho e põe-lhe as mãos sobre os ombros)
Este é tão doente que não pode pedir na rua... Para se aguentar de pé, tem
de se encostar a uma parede...
(Chega junto de outro)
Manuel revela uma grande ternura pelas pessoas que vai indicando.
Este tem dois cepos em vez de braços...
(Ri-se com amargura)
São a sua fortuna... Ganha o pão exibindo-se, em chaga, pelas feiras...
(Pausa)
Há aqui quem faça de parvo para fazer rir os outros...
(Imita um atrasado mental)
Sabemos, desde miúdos, que a doença, a miséria e a dor fazem rir os mais
afortunados...
(Olha fixamente para Matilde) A frase tem o tom de uma acusação.)
A senhora, hoje, veio ter connosco porque não sabia para onde se havia de
voltar...
(Pausa)
Gesticula a falar.
Mas nós passamos a vida inteira a ir ter convosco porque também não
temos a quem recorrer! E que nos dão, senhores, que nos dão quando lhes
batemos às portas no Inverno, com os filhos embrulhados em trapos, tão cheios
duma fome que o pão, só por si, não satisfaz?
(Pausa)
Cinco réis, senhores! Dão-nos cinco réis ou dizem-nos que tenhamos
paciência!
(Mete a mão no bolso e tira uma moeda)
Rita!
(Rita levanta-se e aproxima-se. Manuel entrega-lhe uma moeda)
Dá isto à Sr.a Dona Matilde e manda-a embora. Se ela voltar, diz-lhe que
tenha paciência. Não queremos pobres à nossa porta!
(Para o povo)
Quando precisamos deles, dão-nos cinco réis! Quando precisam de nós,
pedem-nos a vida!
Fica de braços cruzados e de costas voltadas para Matilde.
Vira-se lentamente e encara Matilde.
(Cada vez mais excitado)
Se há guerra, se temos o inimigo à porta - Aqui d'el-rei que a terra é de
todos e todos a temos que defender, mas, batido o inimigo, chegada a época das
colheitas, quando se trata de comer os frutos da tal terra que é de todos, então
não! Então a terra já é só deles!
(Cala-se, visivelmente cansado, e deixa cair a cabeça sobre o peito. Durante uns
segundos ninguém fala)
Rita!
(Rita, que se conserva acabrunhada com a moeda na mão, faz um gesto indicativo
de que o está a ouvir)
Não lhe dês a moeda.
(Para Matilde, depois duma pausa)
Desculpe o modo como a tratei.A senhora não merece as palavras que proferi, mas eu também não mereço
tê-las proferido...
Veja como andamos ambos perdidos e afastados do que somos e do que
deveríamos ser!
(Olha para o céu)
Adivinha-se em Manuel o sonhador que se domina e que raras vezes se dá ao luxo
de sonhar.
Vem aí a madrugada...
(Respira fundo, enchendo os pulmões de ar)
O céu está carregado de estrelas e o ar tão puro, que só de cheirá-lo nos
sentimos outros!
(Pausa)
A frase é proferida com entusiasmo.
- Ah! Senhora, se o general estivesse esta noite aqui, levava-nos com ele até
ao fim do mundo!
(Pausa)
A frase é proferida com entusiasmo
Descreve uma visão que o fascina. Será a primeira vez que a tem?
Que estranho exército não formaríamos! Rotos, coxos, sem armas e sem
tambores, a abarrotar de fé, deixaríamos atrás de nós um rasto de sangue que
nem as chuvas do Inverno lavariam das estradas: um rasto do nosso próprio
sangue, senhora, do sangue das nossas feridas, dos nossos pés cansados, das
nossas almas vazias...
(Pausa)
Volta repentinamente à realidade e A quebra é súbita, inesperada.
Mas o general está preso em São Julião da Barra, nós... estamos presos à
nossa miséria, ao nosso medo, à nossa ignorância...
(Pausa)
Não a podemos ajudar, senhora. Deus não nos deu nozes e os homens
tiraram-nos os dentes...
(Sorri)
Não temos dentes nem nozes.
(Matilde, que já chegou à frente do palco, detém-se e volta-se para Rita)
O tom é profético e triste. Manuel como que pede desculpa do que diz.
Amanhã, quando começarem a agradecer a Deus a prisão do general,
estaremos à porta das igrejas pedindo esmola...
(Pausa)
Depois de amanhã, senhora, estaremos arrefecendo as almas ao calor das
fogueiras... Até havemos de aplaudir...
(Pausa)
Não nos leve a mal, senhora, a culpa não é nossa...
Depois duma breve hesitação.
(Matilde, que já chegou à frente do palco, detém-se e volta-se para Rita)
Matilde - A minha moeda, Rita!
(Rita hesita e olha para Manuel.)
Manuel (Para Rita) - Dá-lha, mulher.
(Para Matilde)
Não é uma esmola. Dou-lha para que a use ao peito, como uma medalha.
Tivesse eu mais, e dava-lhe trinta - as trinta moedas por que se vende a alma.
Quem as pague ou as receba, perde o direito à esperança, senhora.
(Rita entrega a moeda a Matilde. Num gesto impulsivo, beija-a e corre a juntar-se
aos seus. A luz que iluminava o povo apaga-se gradualmente e apenas Matilde
permanece iluminada. António de Sousa Falcão surge pela direita do palco.)
Sousa Falcão (Entra no palco já a falar) - Matilde: em pouca conta a teria se
lhe ocultasse a verdade. Quem acompanhou a Gomes Freire em todas as lutas
da sua vida tem direito a estar presente até ao fim e a assistir, de pé, à sua
derradeira batalha.
Matilde - Que novas traz, António?
Sousa Falcão - Tantas e tão más, que se me aperta o coração só de pensar
nelas.
Matilde (Com grande ansiedade) - Deixam-me vê-lo? Diga que me deixam
vê-lo!
Sousa Falcão - Não lhe posso ocultar nada, Matilde. Não autorizam que
ninguém o veja.
O relato é feito em tom monótono.
A ira supera o espanto.
Matilde - Como é possível que os outros todos possam falar com quem
querem e só ele seja privado de ver os seus parentes e os seus melhores amigos?
Sousa Falcão - Ao chegar a São Julião da Barra, meteram-no logo numa
masmorra e aí ficou todo o dia, às escuras, até que, ao cair da noite, uns oficiais
lhe mandaram uma enxerga e duas mantas por piedade...
Só ao fim de seis dias lhe abonaram dinheiro para comer.
(Matilde, de mãos postas, angustiada, cai de joelhos)
Adoeceu, chamaram um médico que entendeu provir a doença de o não
deixarem barbear-se.
O comandante do forte pediu autorização para comprar navalhas de
segurança. Não lha concederam...
Matilde (Grita) - Mas que gente é esta?!
Sousa Falcão continua no tom anterior. Dir-se-ia que não ouviu Matilde.
Sousa Falcão - O comandante do forte prontificou-se a estar presente
quando o barbeassem.
Não o autorizaram. Pediu a demissão. Recusaram-lha.
Comunicou com Beresford e logo D. Miguel Pereira Forjaz escreveu ao
marechal estranhando que ele comunicasse com um preso de estado.
(Sousa Falcão aproxima-se de Matilde e ajuda-a a levantar-se)
Não lhe permitiram que escolhesse um advogado e nomearam-lhe um que
já tem a seu cargo a defesa de 12 presos.
(Matilde vagueia no palco ao acaso.)
(A voz é angustiada)
Matilde - O meu homem! o meu homem, que nunca lutou com gente
desta... metido numa masmorra, ele, que se bateu sempre em campo aberto...
Preso como um cão...
(Começa a chorar)
Fala mais baixo. A evocação do passado aumenta-lhe a tristeza.
Ninguém trata dele... para ali, sozinho, abandonado. Era eu que lhe
cuidava da roupa, sabia, António? E que lhe preparava os pratos de que mais
gostava...
Sousa Falcão quase a chorar. - Matilde...
Matilde - Era capaz de comer galinha todos os dias, mas não gostava de
canja. Gostava dela assada, no forno...
Sousa Falcão (Em voz muito baixa) - Matilde...
Matilde - Mas era raro comê-la. Às vezes nem dinheiro tínhamos para o
pão...porque um dia - lembro-me tão bem!- vendeu duas medalha em Paris,
porque não tínhamos vintém em casa...
(Levantando o rosto e olhando para Sousa Falcão)
Há nestas frases de Matilde uma alegria especial, a alegria que provém de estar
revivendo tempos felizes que já passaram.
(Sorri)
Sabe o que ele fez com o dinheiro? Comprou-me uma saia verde. Disse-me
que era para quando voltássemos a Portugal...
(Pausa)
Foi no Inverno. Caía neve.
(Pausa)
Nunca a vesti...
(Encolhe os ombros)
Nunca calhou, não sei porquê...
Sousa Falcão - Oiça, minha amiga...
Matilde - Talvez a vista no dia em que ele sair do forte, para o receber,
quando chegar a casa - a minha saia verde...
Que acha, António? Acha que a vista nesse dia?
É quase infantil ao tentar convencer-se de que voltará a ver o general.
Sousa Falcão (Com voz tremente) - É uma boa ideia, Matilde. Julgo que lhe
dará uma grande alegria...
Matilde - E asso-lhe uma galinha, no forno, como ele gosta....
Sousa Falcão - Sim, Matilde.
Regressa à realidade. O seu tom tem a tristeza de quem sabe que não há esperança
possível.
Matilde (Depois duns instantes de silêncio) - Não sei como agradecer-lhe
tudo o que foi para nós, António: o amigo das coisas importantes e das
pequenas coisas - essas pequenas coisas que só os verdadeiros amigos
compreendem. Assistiu à morte do nosso filho e... agora, finge acreditar que
vou ter ocasião de vestir a saia verde!
Ainda que o não creia, fico-lhe igualmente grata por ambas as coisas.
(Afasta-se. Fica de costas para Sousa Falcão)
Diz por dizer. Sabe que não há nada a fazer, mas não deseja reconhecê-lo em frente
de Matilde.
Ambos sabemos que ele não sairá vivo de São Julião da Barra. Não o
podem deixar sair, António. Onde quer que o encontrassem lembrar-se-iam do
que são, e nenhum deles pode correr o risco de encontrar a sua própria
consciência ao dobrar uma esquina.
Sousa Falcão - Talvez ainda haja esperança...
Matilde - Obrigado, meu amigo. Obrigado por ma querer dar, mas não:
nesta terra, a esperança é uma palavra vã.
(Pausa)
Eu é que tenho de continuar como se a tivesse. Sou a mulher dele,
António... e ele... é o meu homem.
Enquanto nos não matar em, aquele de nós que estiver livre tem de lutar.
Sousa Falcão - Mas como, Matilde? Como é que se pode lutar contra a
noite?
Matilde - Vamos falar com o D. Miguel Forjaz.
Com a energia possível a quem chegou ao fim das suas forças.
Sousa Falcão - Nem nos receberá! Conheço-o há muitos anos. É frio,
desumano e calculista. Odeia Gomes Freire com um ódio que vem de longe, um
ódio total, que não perdoa, nada! Lembre-se de que são primos, e antigos
camaradas de armas... Um é franco, aberto, leal.
O outro é a personificação de mediocridade consciente e rancorosa.
Gomes Freire perdoaria a D. Miguel Forjaz, mas D. Miguel Forjaz vai
enforcar Gomes Freire.
É inútil bater-lhe à porta.
Matilde - Um cristão não fecha assim a porta a uma desgraçada que lhe
vem pedir pela vida do seu homem... tem de me ouvir.
Sousa Falcão (Com azedume) – D. Miguel é um cristão de domingo,
Matilde. Pode estar certa de que todos os dias dá, a um pobre, pão que lhe baste
para se conservar vivo até morrer de fome...
Matilde - Mas temos de ir, António.
Sousa Falcão - Não nos receberá.
Matilde - Nesse caso iremos para que não nos receba.
(Como quem faz uma descoberta)
É isso mesmo, António! Iremos para que não nos receba.
(Pega no braço de Sousa Falcão e dirigem-se ambos para o centro do palco. Detêmse a meio caminho.
Vindo do fundo, surge um criado, de libré, que se coloca à frente deles)
Diga ao Sr. Governador que lhe pedem audiência Matilde de Melo e
António de Sousa Falcão.
(Matilde continua para Sousa Falcão, enquanto o criado se afasta, e como que
alucinada)
É preciso que os homens se definam para que possam ser julgados.
É preciso que ele não nos receba - é a nossa oportunidade de o obrigar a
definir-se, de o colocar no banco dos réus, para que o juiz o possa julgar...
Sousa Falcão (Com desânimo) - Que juiz?
Matilde - Eu, o Gomes Freire, o criado, ele próprio, a vida...
Criado (Reaparecendo) - Sua Exª não recebe amantes de traidores e amigos
dos inimigos d'el-rei.
Então todo o desespero reprimido desde a Prisão de Gomes Freire vem à superfície.
Corre para o fundo do palco como se tivesse endoidecido.
Sousa Falcão (Desvairado, corre para o fundo do palco) - Cão! Covarde!
Assassino! Pega na espada e vem bater-te como um homem!
Não te escondas atrás do cargo que ocupas!
Eu sei quem tu és!
(O criado desaparece e Sousa Falcão segue-o, gritando, até desaparecer também)
Cão! Assassino!
(Matilde de Melo regressa à frente do palco. Vem nitidamente humilhada pela
resposta do governador e marcada pelo sofrimento dos últimos dias.)
Matilde (Fala muito lentamente, com a voz embargada pela comoção) - O amor
intenso que unia Matilde a Gomes Freire explica todas as suas reacções.
Matilde a Amante dum traidor... E assim acabamos a vida... Tu, que deste
aos homens tudo o que tinhas e viveste de mãos abertas, acabas enforcado com
o rótulo de traidor.
(Começa a chorar)
E eu... que nasci tua mulher, morro tua
(Começa a chorar)
- amante! Nem me recebem, meu amor.
(pausa)
O amor intenso que unia Matilde a Gomes Freire explica todas as suas reacções.
Para Matilde o mundo não passava dum inimigo que os perseguia a ambos. Só adiante,
no decorrer da conversa que tem com o principal Sousa, começa a tomar consciência da
posição do general em relação ao que se passa no país.
Tudo isto se deve depreender dos seus gestos e do seu tom de voz.
Não querem nada connosco...
(Pausa)
Chegamos ao fim da vida - matam-nos e nem nos consideram dignos
duma explicação...
Tratam-nos assim, como se nunca tivéssemos existido...
(Abre a mão e olha para a moeda que lhe deu Manuel)
Vivemos sempre sem nada; demos tudo o que tínhamos - tu e eu -, tudo o
que tínhamos, e acabamos sem nada...
Até esmola me dão!
(Pega na moeda com dois dedos e observa-a)
Vês? Deram-me esta moeda. É uma das trinta moedas com que se
compram e vendem as almas... Neste reino as almas não são caras, meu amor!
(Volta a observar a moeda)
Uma das trinta moedas!
(Endireita-se. Recupera parte da sua antiga energia. Como que se adivinha nela a
mulher que acompanhou Gomes Freire pelos campos de batalha da Europa. Fala para o
palco)
Sr. Principal: a quanto montam os seus bens?
(Estende o braço com a moeda na mão)
Quantas moedas destas tem nos cofres da sua igreja? 30, 60,
(Surge, a meio do palco, intensamente iluminado, o principal Sousa. Está vestido
de gala e sentado na cadeira em que apareceu no 1º Acto)
Principal Sousa (Em tom paternal) - Atendendo ao estado de espírito em
que se encontra, perdoo-lhe as palavras que acaba de proferir. Entre, minha
filha, entre nesta casa, (Faz um gesto convidativo. Depreende-se, desse gesto, que o
Principal está convidando Matilde a entrar num local sagrado) onde encontrará a
resignação de que tanto necessita...
Matilde - Sou amante dum traidor e mesmo os traidores têm honra,
senhor!
São tantas as portas que se nos fecham, que acabamos por ter medo das
que se abrem à nossa frente...
Principal Sousa - Deus abre todas as portas...
Matilde (Exaltada)
Aponta para fora do palco, para o forte que nunca lhe sai do pensamento.
Em tom moderador.
Pois que vá abrir as do forte de São Julião da Barra, se é capaz! Que as abra
de par em par, para que todos vejam quem lá está!
(Domina-se)
O senhor, como governador do Reino, mandou prender e condenar um
inocente...
Principal Sousa - As razões do Estado...
Matilde - Conheço esse argumento.
Foi com ele que justificaram a condenação de Cristo!
Principal Sousa (Exaltado) - Cale-se! Há lábios que não têm o direito de
pronunciar esse nome!
Matilde (Com escárnio crescente) - Os meus, bem o sei!
Sou amante dum homem, e não tenho o direito de pronunciar o nome de
Cristo, mas o senhor, que condena inocentes a quem aconselha resignação,
(Pausa)
que dá esmola aos pobres e condena à forca os que pretendem acabar com
a pobreza,
(Pausa)
o senhor, que condena a mentira em nome de Cristo e mente em nome do
Estado,
(Pausa)
que vende Cristo todos os dias, a todas as horas, para o conservar num
poder que Ele nunca quis,
(Pausa)
o senhor, tem o direito a pronunciar o seu nome!
(Ri com escárnio)
Diga-me: também lhe aconselha, a Ele, que se resigne?
“Perdoai-nos, Senhor, as nossas dívidas. Como nós perdoamos aos nossos
devedores.”
A quantos devedores perdoou o senhor, durante a vida?
(Ri-se)
Como governador, já ,perdoou a Cristo o que Ele foi e o que Ele ensinou?
(Com amargura)
Quanto lhe deve Cristo senhor? Já fez as contas?
(Pausa)
Pois venho aqui pedir-lhas em nome dum credor - do credor Gomes Freire
d'Andrade, que está lá em baixo, preso em São Julião da Barra, aguardando que
o senhor pague o que lhe deve.
O Principal Sousa está acabrunhado. Fala, mais para interromper Matilde do que
por espanto.
Principal Sousa - O que lhe devo?!
Matilde (Com autoridade) - Cale-se! Agora sou eu que lho ordeno! De tanto
abrir a boca, taparam-se-lhe os ouvidos e de tantas vezes repetir a mesma coisa,
esqueceu-se de que as palavras têm sentido e obrigam a quem as profere! A
todos chega a hora de prestar contas.
(Pausa)
Ainda se lembra das palavras de seu Amo?
“Ninguém pode servir a dois senhores: porque ou há-de odiar a um e
amar o outro, ou há-de afeiçoar-se a um e desprezar o outro.”
O vosso credor Gomes Freire d’Andrade deseja saber a quem servis!
(Pausa)
“Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça porque
deles é o reino de Deus.” O vosso credor Gomes Freire d'Andrade está numa
masmorra por amor da justiça e quer saber o que fizestes, senhor, para
reconhecer o seu direito a esse amor!
(Pausa)
“Porque eu vos digo que se a vossa justiça não exceder a dos escribas e a
dos fariseus, não entrareis no reino de Deus.”
Fica parada no palco, numa atitude que quase se poderia classificar de heróica.
Senhor: ainda os presos não tinham sido condenados e já nas igrejas se
rezavam Te Deum!
O vosso credor Gomes Freire d'Andrade exige que a vossa justiça exceda a
dos escribas e dos fariseus!
Ouviste o que foi dito aos antigos: não matarás e quem matar será
condenado em juízo.
O vosso credor Gomes Freire d'Andrade vai ser morto por ordem da
regência de que fazeis parte - ou será que a vossa mão direita não sabe o que faz
a esquerda?
(Avança para ele)
Estou aqui a pedir-vos contas!
(O principal permanece em silêncio, com os olhos postos no chão. Entra pela
direita o frade Jerónimo Frei Diogo de Melo e Meneses.)
Frei Diogo - Venho de confessar o general, em São Julião da Barra.
A afirmação é dirigida a Matilde como ao Principal Sousa.
Matilde (Corre para o frade) - Como está ele? Frei Diogo, como está ele?
Falou-lhe de mim? Que lhe disse? Por amor de Deus, conte-me tudo... tudo...
(Cai de joelhos em frente do frade.)
Frei Diogo - Se há santos, Gomes Freire é um deles...
Principal Sousa (Paternalmente) - Tudo o que disser a essa mulher só lhe
poderá aumentar o sofrimento.
Tenho estado a ouvi-la, pedindo a Deus que me dê paciência para lhe não
responder...
Frei Diogo - Deus veio à Terra responder a todas as perguntas,
Reverência.
Principal Sousa (Com autoridade) - Há quem não esteja preparado para
ouvir a palavra do Senhor.
Frei Diogo continua a falar no mesmo tom de voz, como se não tivesse ouvido o
principal Sousa.
Frei Diogo - Talvez tenha razão, Reverência, mas não sou homem para
grandes subtilezas. Se me permite, retiro-me.
(Faz uma vénia e encaminha-se para a direita do palco. Antes de sair volta-se para
Matilde, que permanece de joelhos, e fala.)
Frei Diogo - Ao despedir-se, o general pediu-me para a procurar, minha
senhora, e para dizer que tem pensado em si constantemente.
Foi um grande privilégio que Deus lhe concedeu - o de viver ao lado dum
homem como o general Gomes Freire.
Principal Sousa - Frei Diogo!
Frei Diogo - A misericórdia de Deus é infinita. Tão grande que os homens
não a podem conceber. Haja o que houver, não julgue a Deus pelos homens que
falam em Seu nome.
Principal Sousa (Levantando-se exaltadíssimo) - Saia!
Frei Diogo (Para Matilde) - Não faça a Deus o que os homens fizeram ao
general Gomes Freire: não O julgue sem O ouvir. Deus carece cada vez mais
desse direito.
(Sai pela esquerda do palco. O principal Sousa fica de pé, com as pernas abertas,
em atitude de ira. Matilde levanta-se lentamente.)
De entrada, Matilde fala com lentidão, pesando bem as palavras.
Matilde - É tão grande o desprezo que tenho por si, tão infinito o meu
nojo, que só por caridade não traduzo em palavras o que sinto no coração.
Judas, que traiu Cristo uma vez, acabou enforcado numa figueira, mas
Vossa Reverência, que O trai todos os dias, vai acabar entre os seus com todas
as honras que neste Reino se concedem aos hipócritas e se negam aos justos.
O meu homem vai morrer lá em baixo, junto ao mar, com o som do vento
nos ouvidos, mas Vossa reverência há-de morrer, um dia, ouvindo, por entre o
latim, as suas pragas.
Alguma vez ouviu praguejar um homem, Reverência? Um homem a sério,
capaz de palmilhar as estradas da Galileia? Capaz de passar 40 dias no deserto,
ou 150 metido numa masmorra? Então oiça!
(Durante uns instantes fica parada em atitude da quem ouve um ruído longínquo)
Não sabe donde vêm as pragas, pois não? Tanto podem vir do Céu como
de São Julião da Barra...
Pois há-de viver até ao fim dos seus dias sem o saber... e à medida que for
envelhecendo, à medida que a sua hipocrisia se for afinando até morrer
convencido de que foi cristão, o som destas pragas há-de ir aumentando de
volume até lhe encher os ouvidos, até que não possa ouvir mais nada.
Há-de-o ouvir no som do vento que lhe entra pelas janelas... no bater das
portas da sua igreja... na voz das crianças que lhe pedirem esmola...
Esta praga lhe rogo eu, Matilde de Melo, mulher de Gomes Freire
d'Andrade hoje 18 de Outubro de 1817.
(O Principal Sousa senta-se na cadeira. Ao longe, muito ao longe, começa a ouvirse o murmúrio da multidão, entrecortado, de quando em quando, por latim)
Todos somos Cristo, Reverência e todos começamos pela esperança de que
se realize o que há de Cristo em cada um de nós.
A uns mata-lhes a vida a esperança, a outros matam-na os que em seu
nome falam, tendo-a já perdido...
Mas há quem escape, Reverência, quem chegue ao fim da vida com o seu
Cristo tão intacto como no dia em que nasceu.
Esta frase contém uma crítica ao principal. É proferida em tom de desafio.
Esses morrem na forca ou apodrecem nas prisões, não vá a sua presença
incomodar a burocracia de Deus!
(Matilde está cansada. A sua voz é trémula. Dir-se-ia que já não sabe o que diz.
Por vezes tem dificuldade na escolha das palavras)
Há quatro dias que não me deito e que não sinto, na minha, qualquer mão
amiga...
Oiço-me falar, mas já não sei o que digo.
Quero calar-me e não posso. Se me calo, vejo-o à minha frente, sozinho, à
espera de que o vão buscar...
Não reza porque viveu tão perto de Deus que nem precisa de se lhe
dirigir...
Pensa em mim com lágrimas nos olhos e gostaria de que eu estivesse ao
seu lado.
Estive sempre ao seu lado e, agora, quando mais precisávamos de estar de
mãos dadas, estou aqui, longe dele, só, com a saudade imensa que já sinto da
sua voz...
(Cobre o rosto com as mãos)
Do seu corpo...
(Cai de joelhos. O murmúrio da multidão, que se aproxima, é cadenciado e
regular. Adivinha-se que entoam canções. Pela esquerda do palco surge António de
Sousa Falcão.)
Sousa Falcão - Os presos já vão a caminho do Campo de Sant'Ana,
Matilde. Temos de partir.
Do alto da serra poderemos ver a fogueira em São Julião da Barra. Como
se estivéssemos com ele até ao fim...
Matilde (Ajoelhada, para o principal Sousa) - Salve-o... salve-o... Ainda está
a tempo... um correio, a cavalo, chega lá em meia hora... Salve o meu amor,
senhor, o meu amor... que é tudo o que tenho...
(Entra D. Miguel Pereira Forjaz, que fica ao lado do principal Sousa.)
Começa por estar confuso, mas vai-se dominando gradualmente.
D. Miguel - Lisboa há-de cheirar toda a noite a carne assada, Excelência, e
o cheiro há-de-lhes ficar na memória durante muitos anos... Sempre que
pensarem em discutir as nossas ordens, lembrar-se-ão do cheiro...
(Com raiva)
É verdade que a execução se prolongará pela noite, mas felizmente há
luar...
Matilde - Os homens fizeram Deus à sua imagem e semelhança e depois
fizeram-se à imagem e semelhança de Deus...
Quem foi que me disse isto? Já não sei... Só sei que tenho de ir para o alto
da serra com o António.
Que Deus me dê forças, já que as minhas acabaram - e que Deus o salve, já
que eu não posso.
(A luz que incide sobre o principal Sousa apaga-se gradualmente. Surge uma cruz
iluminada a meia altura do palco. Matilde fala para a cruz)
A partir desta frase, Matilde fala com crescente intensidade dramática.
Senhor: deste-me a melhor das vidas que eu poderia ter desejado.
Deste-me um homem que amei e que amou, um homem que encheu todos
os meus dias de felicidade e a quem fiz feliz. Não Vos pedi mais nada e, por
isso, as nossas contas estão saldadas.
Mas as contas do meu homem estão por fechar.
Deste-lhe cinco talentos e ele transformou-os em dez.
Em troca, Senhor, aguardas que o matem sem dó nem piedade, depois
dum tormento em que nem quero pensar.
Não, Senhor, não o podes abandonar agora!
Não se entrega, assim, um homem aos cães, depois duma vida de
trabalhos e de canseiras, só porque a idade lhe aumentou a fome e a sede de
justiça!
(Começam a entrar no palco vários populares que se sentam de costas para o
público)
Não!
Disseste um dia que quem desse de beber a um pobre Te estava dando de
beber a Ti...
Pois o meu homem quis saciar a fome e a sede de todos os pobres e está
preso à ordem dos donos das fontes!
(Entram mais populares que se juntam aos primeiros)
Preso, Senhor, à espera de que os vendilhões do templo o levem à forca!
Por quem és Tu, Senhor, por Ti ou contra Ti?
(Levanta-se)
Quando vieste à Terra, com a Tua mensagem de salvação, quem
encontraste a Teu lado?
(Faz um gesto que abrange o povo)
Estes?
(Faz um gesto que abrange o cardeal, D. Miguel Forjaz e os espectadores)
Ou estes?
E quem deu vida às Tuas palavras, espalhando-as pelos quatro cantos da
Terra?
(Repete o primeiro gesto)
Estes?
(Repete o segundo gesto)
Ou estes?
E por quem estás agora, Senhor? Pelo meu homem , que deu a vida por
estes...
(Repete o primeiro gesto)
Ou pelos Teus inimigos de sempre?
(Matilde cai no chão inanimada. Acende-se a luz que incide sobre o
principal Sousa, que se levanta.)
Principal Sousa - Paciência, minha filha... Até Deus se resignou ao Seu
destino!
(Apaga-se a luz que incide sobre Matilde de Melo e reacende-se a cruz)
Trata-se de uma confissão de impotência e, simultaneamente, duma crise de
honestidade.
Senhor: que hei-de eu responder? Ensinaram-me a argumentar com
doutores, mas faltam-me as palavras para falar a quem não conhece os
argumentos!
Sinto-me como um doutor do templo no dia em que lá entraste...
Dir-se-ia que profere uma sentença.
(O murmúrio do povo e o ruído de padres rezando em latim aumenta de
intensidade. O Principal Sousa fica de pé com a cabeça descaída, enquanto António de
Sousa Falcão corre para junto de Matilde, a quem ajuda a levantar-se. Matilde e Sousa
Falcão saem pela esquerda do palco. Antes, porém, de sair, Matilde tira do bolso a moeda
que lhe deu Manuel e lança-a aos pés do principal Sousa.)
Matilde - Tome-a. É sua!
(Para o céu)
Senhor: não pretendo ensinar-Te a ser Deus, mas, quando chegar a hora da
sentença, não Te esqueças de que estes sabiam o que faziam!
Matilde e Sousa Falcão saem pela esquerda. A cena deixa de se ver e, muito
gradualmente apaga-se a luz que incidia sobre o principal Sousa. Durante uns instantes
ouve-se o latim dos padres que acompanham os presos ao Campo de Sant'Ana e vêem-se
os populares, sentados, à meia luz. Depois, sùbitamente, o palco fica às escuras e em
silêncio. Nesse mesmo momento, muito gradualmente, a luz volta ao palco de forma a
que os presentes fiquem na penumbra. O povo continua sentado de costas para o
público. À esquerda e a meio do palco adivinham-se os vultos de Matilde de Melo e de
Sousa Falcão, de pé, com os olhos postos no horizonte.
Manuel (Sentado de costas para o público e quase em surdina) - Pediu que o
fuzilassem, como um soldado, mas recusaram-lho.
1º Popular - Cães!
Manuel - Quem sai aos seus, degenera! Todos os que saem aos seus,
degeneram... Eles, nós, todos...
2º Popular - Depois de o queimarem, vão-lhe atirar as cinzas ao mar...
(Acende-se um foco pouco intenso que ilumina Matilde e Sousa Falcão.
Matilde veste uma saia verde e Sousa Falcão está inteiramente vestido de negro.)
Os últimos dias destruíram Sousa Falcão. Adquiriu, todavia, uma calma e uma
paz interior que nunca tivera, talvez por ter revisto a sua concepção da posição do
homem no mundo.
Matilde (Com amizade) - Ele ainda está vivo, António. Não devia ter vindo
de luto. Olhe: vesti a minha saia verde. Vê?
Sousa Falcão - Não estou de luto por ele, Matilde, mas a noite passada não
pude dormir. Passei a noite a pensar, e, de madrugada, percebi que não sou
quem julgava ser...
Matilde - o melhor dos amigos, António.
Sousa Falcão - Nem isso sou! Só é digno de ser amigo de alguém quem de
si próprio é amigo, Matilde, e eu odeio-me com toda a força que me resta.
Fosse eu digno da ideia que de mim mesmo tinha, e estava lá em baixo,
em São Julião da Barra, ao lado de Gomes Freire, esperando a morte...
Quando os justos estão presos, só os injustos podem ficar fora das cadeias
e eu, Matilde, vendi-me para estar, agora, aqui, a vê-lo morrer.
As ideias de Gomes Freire são também as minhas, mas ele vai ser
enforcado - e eu não.
Os motivos que os governadores tiveram para prendê-lo, também os
tiveram para me prenderem a mim, mas a ele prenderam-no - e a mim não.
Faltou-me sempre coragem para estar na primeira linha...
Durante estes meses, duas vezes dei comigo à berma de lhe chamar louco,
para desculpar a minha própria cobardia.
Há homens que obrigam todos os outros homens a reverem-se por
dentro...
É por mim que estou de luto, Matilde!
Por mim...
Matilde - Isto é o fim, António...
Sousa Falcão - o fim... Quando virmos, lá em baixo, o clarão da fogueira, já
ele morreu...
Matilde - O clarão da fogueira!
Quando o virmos, já ele está aqui ao pé de nós! Foi para o receber que eu
vesti a minha saia verde!
(Pausa)
A partir deste momento os gestos e as palavras de Matilde são quase infantis. Está
a despedir-se do homem que amou e fá-lo com uma ternura infinita e uma dignidade que
a ninguém passa despercebida.
Vem dizer-nos adeus, António, vem abraçar-nos pela última vez. Nunca
partiu para uma batalha sem se despedir de mim e, agora, que se acabaram as
batalhas, vem apertar-me contra o peito! Quer que o veja pela última vez de
uniforme, o uniforme que eu o ajudava a vestir antes das batalhas...
(Pausa)
António: Sinto-o! Vem aí!
(Avança ao encontro de alguém que julga estar a chegar)
Vem a rir, António, vem a rir como se ria antigamente!
(Pausa)
Oiço-lhe os passos... os passos do meu homem!
António: Olhe!
(Matilde avança e abraça um ser imaginário. Ao fundo surge o clarão
duma fogueira distante)
Juntos, meu amor, juntos por uns instantes, os últimos instantes em que
estaremos juntos na Terra!
Olha, meu amor, vesti a saia verde que me compraste em Paris!
O António chora.
(Para o António)
Não chore, António. Veja como ele ri!
(Faz o gesto de quem abotoa o casaco de Gomes Freire. Fala com ternura)
Esqueces-te sempre deste botão.
(Aponta para a fogueira)
Olha, meu amor, a tua glória!
Vê-a bem, minha vida, porque, quando a fogueira se apagar, tens de te ir
embora... Eu não vou contigo, mas verás que é por pouco tempo... Isso, pelo
menos, me dará Deus...
(Ao longe o clarão da fogueira começa a apagar-se)
Mais uns instantes, meu amor, e voltará a ouvir tambores!
Desta vez, porém, as fanfarras serão em tua honra...
Estão todos à tua espera, meu homem.
(Pausa)
Parece observar o horizonte.
Oiço-os, ao longe, a falar de ti...
(Pausa)
Olha: já estão formados!
(Pausa)
Dá-me um beijo - o último na Terra - e vai! Saberei que lá chegaste quando
ouvir os tambores!
(Estende o pescoço e levanta a cabeça para receber um beijo)
Vai, amor da minha vida...
Com crescente intensidade dramática.
(Por um instante segue-o com os olhos.
Depois com dignidade volta para ao pé de Sousa Falcão)
Julguei que isto era o fim e afinal é o princípio. Aquela fogueira, António,
há-de incendiar esta terra!
(O clarão da fogueira diminui visivelmente)
Adeus, meu amor, adeus. Adeus! Adeus! Adeus!
(Para o povo)
Olhem bem! Limpem os olhos no clarão daquela fogueira e abram as
almas ao que ela nos ensina!
Até a noite foi feita para que a vísseis até ao fim...
(Pausa)
Felizmente - felizmente há luar!
(Desaparece o clarão da fogueira. Ouve-se ao longe uma fanfarra que vai nun
crescendo de intensidade até cair o pano.)
FIM
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