Notes

Chegava um determinado momento no avião, principalmente em voos longos, que as chefes de cabine falavam: “Roberta, vai lá olhar a dianteira pra mim, revesa um pouco com o Fulano”. Não sei se era por que notavam a minha falta de vontade de estar dentro daquela lata e queriam me afastar um pouco daquela confusão, ou se elas simplesmente se incomodavam com minha presença hostil enquanto ficavam lá atrás. Na verdade, quando eram voos noturnos, eu amava ficar sozinha lá na frente por dois motivos: 1-eu ficava sozinha; 2-a maioria dos passageiros estariam dormindo e ninguém viria me encher o saco (a não ser que eu os acordasse enquanto me desequilibrava andando na passarela e dava uma bundada ou um soco de leve na cabeça de alguns).

O problema é que aquele voo não era noturno. Era um Recife-Guarulhos que tinha decolado mais ou menos umas 15h. E a chefe além de falar: “VAI LÁ! CORRE LÁ! FICA LÁ NA DIANTEIRA PRA MIM!”, também disse: “FICA DE OLHO NAQUELE MENOR DESACOMPANHADO LÁ NA POLTRONA 1 CHARLIE PORQUE ELE TÁ COM CARA DE CHORO E TALVEZ NÃO ESTEJA SE SENTINDO BEM. E EU NÃO TÔ COM PACIÊNCIA PORQUE HOJE MEU DIA FOI CHEIO”. - Sim e o meu não? rsrs -

Bom, dei um sorriso falso e obedeci. Fui lá pra frente sem olhar pra cara de ninguém e sem pensar - porque eu não conseguia pensar de tão exausta, insatisfeita e estressada por aturar passageiros me xingando pelo menos uma vez em alguma das 8 horas de trabalho que já haviam se passado - me sentei rapidamente e fiquei virada de lado olhando pra janelinha, fazendo alongamentos com o pescoço e pensando: “Espero que ninguém venha até aqui. Não quero falar com ninguém. Não quero olhar pra ninguém”. Mas sem querer virei pra frente e dei de cara com o tal menino, de uns 8 anos me olhando fixamente com uma cara de carente, e não deu, quando vi já tinha saído um:

-Oi!

-Oi.

-Ce tá bem, tá tudo certinho aí contigo?

-Aham.

-…Ah, legal, então tá.

-Moça, falta muito pra chegar? É que eu quero ver meu pai.

-Não, faltam só 35 minutinhos, rapidinho tá pousando, a gente vai ficar conversando aqui e quando vc for ver, já vai tá lá. Seu pai mora em SP, então?

-Aham, meus pais são separados.

-Aí você mora em Recife mesmo? E sempre que pode vem pra São Paulo ver seu pai?

-Aham.

-EEE! Falta pouco!

-Mas meu pai fica querendo que eu brinque com uns meninos que nem me entendem. Eles não jogam os mesmos jogos que eu… mas são meus únicos amigos em SP.

-IHHH, RELAXA, quando eu tinha mais ou menos a tua idade também era mó tímida, mó retardada, daí hoje tô aqui, não mudei quase nada. E ainda tô nesse uniforme tosco, imagina só. A vida é loucura.

Nisso a criança ficou me olhando com uma cara de “q” e percebi que o diálogo que criei buscando confortar o menino, poderia estar fazendo o efeito inverso. Tentei ajeitar o que eu havia dito:

-A VIDA É LINDA!!!!!!!!!!!!!!!!! O que eu quero dizer é que hoje você pode estar com vários amigos que não te entendem, mas logo você vai fazer muitos outros que vão te amar e te entender muito mais. E além disso, pensa que logo você vai tá vendo seu pai e que sua viagem vai ser muito boa.

Ele sorriu e não falou mais nada. Perguntei seu nome, ele respondeu (não me lembro mais, mas vou chamar de Paulo) e eu disse: “Paulo, tô indo lá pra trás pegar a lixeira pra catar os lixos porque esse povo faz uma sujeira que ninguém merece rsrsrsss, mas ó, qualquer coisa que você precisar me chama nesse botãozinho aqui ó. Meu nome é Roberta”. Apertei a mão dele e ele disse um “tá bom” sorrindo.

Retirei os lixos da aeronave com o outro comissário, o copiloto anunciou o “preparar para o pouso” e fui lá pra trás esperar o aviso de “atar cintos” ligar pra poder fazer o cheque de cabine. Fiz o cheque de segurança, me despedi do Paulo, lhe desejei uma ótima viagem novamente e disse que tudo daria certo, que ele iria se divertir muito.

Quando cheguei em SP, exausta e insatisfeita com a minha vida, depois de mais de 8 horas de pousos e decolagens, e pronta pra esperar mais umas 3 até chegar na minha na minha casa que eu não via há dias, me esqueci que era assim que eu estava e que era assim que me sentia todo o tempo. E não sei por que pensei em aproveitar meu dia seguinte de folga não só dormindo e planejando minha demissão, mas acreditando que existia um lado bom naquilo tudo, e que era por ele que eu ainda estava lá. Vai ver que, de tanto repetir, havia acreditado no que disse ao menino.

O único problema é que eu já não tinha mais 8 anos.