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EVOLUÇÃO
CHAMO-ME INÁCIO; ele, Benedito. Não digo o resto dos nossos nomes por um sentimento de
compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta. Contentem-se com Benedito. Não é muito, mas
é alguma cousa, e está com a filosofia de Julieta: "Que valem nomes, perguntava ela ao namorado. A rosa,
como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmo cheiro." Vamos ao cheiro do Benedito.
E desde logo assentemos que ele era o menos Romeu deste mundo. Tinha quarenta e cinco anos, quando o
conheci; não declaro em que tempo, porque tudo neste conto há de ser misterioso e truncado. Quarenta e
cinco anos, e muitos cabelos pretos; para os que o não eram usava um processo químico, tão eficaz que não
se lhe distinguiam os pretos dos outros-- salvo ao levantar da cama; mas ao levantar da cama não aparecia a
ninguém. Tudo mais era natural, pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e bengala.
O próprio alfinete de diamante, que trazia na gravata, um dos mais lindos que tenho visto, era natural e
legítimo, custou-lhe bom dinheiro; eu mesmo o vi comprar na casa do... Já me ia escapando o nome do
joalheiro;-- fiquemos na Rua do Ouvidor.
Moralmente, era ele mesmo. Ninguém muda de caráter, e o do Benedito era bom,-- ou para melhor dizer,
pacato. Mas, intelectualmente, é que ele era menos original. Podemos compará-lo a uma hospedaria bem
afreguesada, aonde iam ter idéias de toda parte e de toda sorte, que se sentavam à mesa com a família da
casa. Às vezes, acontecia acharem-se ali duas pessoas inimigas, ou simplesmente antipáticas, ninguém
brigava, o dono da casa impunha aos hóspedes a indulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar
uma espécie de ateísmo vago com duas irmandades que fundou, não sei se na Gávea, na Tijuca ou no
Engenho Velho. Usava assim, promiscuamente, a devoção, a irreligião e as meias de seda. Nunca lhe vi as
meias, note-se; mas ele não tinha segredos para os amigos.
Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos deixado o trem e entrado na diligência que nos ia
levar da estação à cidade. Trocamos algumas palavras, e não tardou conversarmos francamente, ao sabor das
circunstâncias que nos impunham a convivência, antes mesmo de saber quem éramos.
Naturalmente, o primeiro objeto foi o progresso que nos traziam as estradas de ferro. Benedito lembrava-se
do tempo em que toda a jornada era feita às costas de burro. Contamos então algumas anedotas, falamos de
alguns nomes, e ficamos de acordo em que as estradas de ferro eram uma condição de progresso do país.
Quem nunca viajou não sabe o valor que tem uma dessas banalidades graves e sólidas para dissipar os tédios
do caminho. O espírito areja-se, os próprios músculos recebem uma comunicação agradável, o sangue não
salta, fica-se em paz com Deus e os homens.
-- Não serão os nossos filhos que verão todo este país cortado de estradas, disse ele.
-- Não, decerto. O senhor tem filhos?
-- Nenhum.
-- Nem eu. Não será ainda em cinqüenta anos; e, entretanto, é a nossa primeira necessidade. Eu comparo o
Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro
-- Bonita idéia! exclamou Benedito faiscando-lhe os olhos.
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-- Importa-me pouco que seja bonita, contanto que seja justa.
-- Bonita e justa, redargüiu ele com amabilidade. Sim, senhor tem razão: -- o Brasil está engatinhando; só
começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.
Chegamos a Vassouras; eu fui para a casa do juiz municipal, camarada antigo; ele demorou-se um dia e
seguiu para o interior. Oito dias depois voltei ao Rio de Janeiro, mas sozinho. Uma semana mais tarde,
voltou ele; encontramo-nos no teatro, conversamos muito e trocamos notícias; Benedito acabou
convidando-me a ir almoçar com ele no dia seguinte. Fui; deu-me um almoço de príncipe, bons charutos e
palestra animada. Notei que a conversa dele fazia mais efeito no meio da viagem-- arejando o espírito e
deixando a gente em paz com Deus e os homens; mas devo dizer que o almoço pode ter prejudicado o resto.
Realmente era magnífico; e seria impertinência histórica pôr a mesa de Luculo na casa de Platão. Entre o
café e o cognac, disse-me ele, apoiando o cotovelo na borda da mesa, e olhando para o charuto que ardia:
-- Na minha viagem agora, achei ocasião de ver como o senhor tem razão com aquela idéia do Brasil
engatinhando.
-- Ah!
-- Sim, senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligência de Vassouras. Só começaremos a andar
quando tivermos muitas estradas de ferro. Não imagina como isso é verdade.
E referiu muita cousa, observações relativas aos costumes do interior, dificuldades da vida, atraso,
concordando, porém, nos bons sentimentos da população e nas aspirações de progresso. Infelizmente, o
governo não correspondia às necessidades da pátria; parecia até interessado em mantê-la atrás das outras
nações americanas. Mas era indispensável que nos persuadíssemos de que os princípios são tudo e os
homens nada. Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos; e abyssus abyssum
invocat. Depois foi mostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas com apuro. Mostrou-me as coleções de
quadros, de moedas, de livros antigos, de selos, de armas; tinha espadas e floretes, mas confessou que não
sabia esgrimir. Entre os quadros vi um lindo retrato de mulher; perguntei-lhe quem era. Benedito sorriu.
-- Não irei adiante, disse eu sorrindo também.
-- Não, não há que negar, acudiu ele; foi uma moça de quem gostei muito. Bonita, não? Não imagina a
beleza que era. Os lábios eram mesmo de carmim e as faces de rosa; tinha os olhos negros, cor da noite. E
que dentes! verdadeiras pérolas. Um mimo da natureza.
Em seguida, passamos ao gabinete. Era vasto, elegante, um pouco trivial, mas não lhe faltava nada. Tinha
duas estantes, cheias de livros muito bem encadernados, um mapa-múndi, dous mapas do Brasil. A secretária
era de ébano, obra fina; sobre ela, casualmente aberto, um almanaque de Laemmert. O tinteiro era de
cristal,-- "cristal de rocha", disse-me ele, explicando o tinteiro, como explicava as outras cousas. Na sala
contígua havia um órgão. Tocava órgão, e gostava muito de música, falou dela com entusiasmo, citando as
óperas, os trechos melhores, e noticiou-me que, em pequeno, começara a aprender flauta; abandonou-a logo,
-- o que foi pena, concluiu, porque é, na verdade, um instrumento muito saudoso. Mostrou-me ainda outras
salas, fomos ao jardim, que era esplêndido, tanto ajudava a arte à natureza, e tanto a natureza coroava a arte.
Em rosas, por exemplo, (não há negar, disse-me ele, que é a rainha das flores) em rosas, tinha-as de toda
casta e de todas as regiões.
Saí encantado. Encontramo-nos algumas vezes, na rua, no teatro, em casa de amigos comuns, tive ocasião de
apreciá-lo. Quatro meses depois fui à Europa, negócio que me obrigava a ausência de um ano; ele ficou
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cuidando da eleição; queria ser deputado. Fui eu mesmo que o induzi a isso, sem a menor intenção política,
mas com o único fim de lhe ser agradável; mal comparando, era como se lhe elogiasse o corte do colete. Ele
pegou da idéia, e apresentou-se. Um dia. atravessando uma rua de Paris, dei subitamente com o Benedito.
-- Que é isto? exclamei.
-- Perdi a eleição, disse ele, e vim passear à Europa.
Não me deixou mais; viajamos juntos o resto do tempo. Confessou-me que a perda da eleição não lhe tirara a
idéia de entrar no parlamento. Ao contrário, incitara-o mais. Falou-me de um grande plano.
-- Quero vê-lo ministro, disse-lhe.
Benedito não contava com esta palavra, o rosto iluminou-se-lhe; mas disfarçou depressa.
-- Não digo isso, respondeu. Quando, porém, seja ministro, creia que serei tão-somente ministro industrial.
Estamos fartos de partidos: precisamos desenvolver as forças vivas do país, os seus grandes recursos.
Lembra-se do que nós dizíamos na diligência de Vassouras? O Brasil está engatinhando; só andará com
estradas de ferro...
-- Tem razão, concordei um pouco espantado. E por que é que eu mesmo vim à Europa? Vim cuidar de uma
estrada de ferro. Deixo as cousas arranjadas em Londres.
-- Sim?
-- Perfeitamente.
Mostrei-lhe os papéis, ele viu-os deslumbrado. Como eu tivesse então recolhido alguns apontamentos, dados
estatísticos, folhetos, relatórios, cópias de contratos, tudo referente a matérias industriais, e lhos mostrasse,
Benedito declarou-me que ia também coligir algumas cousas daquelas. E, na verdade, vi-o andar por
ministérios, bancos, associações, pedindo muitas notas e opúsculos, que amontoava nas malas; mas o ardor
com que o fez, se foi intenso, foi curto; era de empréstimo. Benedito recolheu com muito mais gosto os
anexins políticos e fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um vasto arsenal deles. Nas conversas comigo
repetia-os muita vez, à laia de experiência; achava neles grande prestígio e valor inestimável. Muitos eram
de tradição inglesa, e ele os preferia aos outros, como trazendo em si um pouco da Câmara dos Comuns.
Saboreava-os tanto que eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem aquele aparelho verbal; creio
que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas formas curtas, tão cômodas, algumas lindas,
outras sonoras, todas axiomáticas, que não forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz
com Deus e os homens.
Regressamos juntos; mas eu fiquei em Pernambuco, e tornei mais tarde a Londres, donde vim ao Rio de
Janeiro, um ano depois. Já então Benedito era deputado. Fui visitá-lo, achei-o preparando o discurso de
estréia. Mostrou-me alguns apontamentos, trechos de relatórios, livros de economia política, alguns com
páginas marcadas. por meio de tiras de papel rubricadas assim: -- Câmbio, Taxa das terras, Questão dos
cereais em Inglaterra, Opinião de Stuart Mill, Erro de Thiers sobre caminhos de ferro, etc. Era sincero,
minucioso e cálido. Falava-me daquelas cousas, como se acabasse de as descobrir, expondo-me tudo, ab
ovo; tinha a peito mostrar aos homens práticos da Câmara que também ele era prático. Em seguida,
perguntou-me pela empresa; disse-lhe o que havia.
-- Dentro de dous anos conto inaugurar o primeiro trecho da estrada.
-- E os capitalistas ingleses?
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-- Que tem?
-- Estão contentes, esperançados?
-- Muito; não imagina.
Contei-lhe algumas particularidades técnicas, que ele ouviu distraidamente, -- ou porque a minha narração
fosse em extremo complicada, ou por outro motivo. Quando acabei, disse-me que estimava ver-me entregue
ao movimento industrial; era dele que precisávamos, e a este propósito fez-me o favor de ler o exórdio do
discurso que devia proferir dali a dias.
-- Está ainda em borrão, explicou-me; mas as idéias capitais ficam. E começou:
No meio da agitação crescente dos espíritos, do alarido partidário que encobre as vozes dos legítimos
interesses, permiti que alguém faça ouvir uma súplica da nação. Senhores, é tempo de cuidar
exclusivamente, -- notai que digo exclusivamente, -- dos melhoramentos materiais do país. Não desconheço
o que se me pode replicar; dir-me-eis que uma nação não se compõe só de estômago para digerir, mas de
cabeça para pensar e de coração para sentir. Respondo-vos que tudo isso não valerá nada ou pouco, se ela
não tiver pernas para caminhar; e aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo, em viagem pelo
interior: o Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortado de estradas de
ferro...
Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo. Mais que pensativo, fiquei assombrado, desvairado diante do
abismo que a psicologia rasgava aos meus pés. Este homem é sincero, pensei comigo, está persuadido do
que escreveu. E fui por aí abaixo até ver se achava a explicação dos trâmites por que passou aquela
recordação da diligência de Vassouras. Achei (perdoem-me se há nisto enfatuação) achei ali mais um efeito
da lei da evolução, tal como a definiu Spencer,-- Spencer ou Benedito, um deles.
     
 
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