Notes

Estou chocado com a maneira como a informação está a ser disseminada pela comunicação social. Vejam este exemplo:
Em Portugal há nesta altura 169 casos confirmados de infeção, incluindo dez pessoas que estão internadas nos cuidados intensivos. De acordo com o último balanço da Direção-Geral de Saúde, foram registados 1.704 casos suspeitos desde o início da epidemia. Mais de cinco mil pessoas estão sob vigilância das autoridades de saúde.
O número a que se dá mais foco:
* 169 -> isto para mim é terrível, porque menospreza-se aquilo que é a realidade.
Números a que não se dá tanto foco/que se menosprezam:
* 1704 casos suspeitos desde o início da epidemia -> Este número é o mais próximo de uma estimativa do número real de infetados. Tudo bem que muitos deles podem não estar infetados, mas também há muita gente que está infetada e não o sabe. Este tipo de texto dá a sensação de que a pandemia só contagiou 10% das pessoas que levantaram suspeições, o que faz com que ainda mais gente menospreze os números e ache que não há problema nenhum em andar na rua mesmo quando ainda há "poucos" casos;
* "cinco mil" por extenso, que passa completamente despercebido por quem lê na diagonal -> isto é extremamente grave, porque é, a meu ver, um número extremamente importante para relatar a dimensão do problema.
Fala-se em aumentos diários de 40-50%, em aumento exponencial, algo que pode não ser muito bem entendido pela maioria das pessoas. Embora devam anunciar estes números, a informação deve ser o mais simples possível. Podem falar em aumentos de 50% mas devem realçar, sobretudo, o contexto em que estamos inseridos:
* dizer que anteontem apareceram 19 infetados, ontem 34 e hoje 57, para que as pessoas possam melhor entender esses 50% e o significado da palavra "exponencial";
* dar muito mais ênfase ao número de casos suspeitos e possíveis infetados, e ao número de pessoas que estão a ser acompanhadas pelas autoridades de saúde. O número de casos suspeitos triplicou entre dia 11/03 (dia em que foi anunciada a pandemia) e dia 13/03, e duplicou de dia 12/03 para 13/03 (471-637-1308, fonte), e mesmo assim o número que se continua a focar é o número de casos confirmados;
* a evolução dos casos suspeitos é muito mais preocupante do que a evolução dos casos reais, e eu temo que a comunicação social também não esteja a fazer um bom trabalho a transmitir à população de que não devem ir para as urgências sem antes contactar a linha de Saúde 24. As urgências foram o maior foco de contágio em Itália, e a comunicação social não está a realçar esse fator devidamente;
* fazer estimativas, uma coisa que eu não vejo em lado nenhum e não percebo como é que ninguém as faz. É preciso fazer as pessoas perceber que, se continuarem a ir pó café, a jantar em casa dos amigos ou a juntarem-se em grupo na rua, o número de infetados vai continuar a aumentar, estando previsto um aumento de 70-90 pessoas infetadas para amanhã;
* fazer listas de ações não recomendadas para a população que não entende bem o contexto da doença. Dizer às pessoas que não devem organizar jantares em casa com família ou amigos, que não devem ir à praia, nem para o gerês, nem para o meio da rua para estar com o pessoal, etc... Há muita gente que acha que este tipo de ações "não faz mal nenhum", porque "ninguém tem sintomas", entre as mais variadíssimas razões;
* explicar a transmissão do vírus de uma maneira simples mas eficaz, fazer vídeos que expliquem como é que o vírus se espalhou no início, em vez de usarem apenas palavras e relatos. Isso, por si só, não chega. As pessoas precisam de "ver pra crer";
* combater o fluxo de desinformação que passa nas redes sociais e não só, nomeadamente em relação a máscaras. A comunicação social tende a usar imagens de pessoas com máscaras para o clickbait, mas a verdade é que nenhuma das organizações, seja ela a DGS, a OMS (em inglês: WHO) ou qualquer outra. Estou farto de tentar passar este vídeo às pessoas, mas a verdade é que muitas continuam a achar que a máscara das medidas de prevenção mais importantes, quando não é;
* a comunicação social devia usar imagens de pessoas ou a lavar as maõs, ou à janela em casa, ou qualquer outro tipo de ação recomendada que tenha eficácia comprovada, em vez de utilizar imagens de pessoas com máscaras que só contribuem para a disseminação de informação falsa, e começam a aparecer casos de máscaras (n95) roubadas de hospitais, pessoas a usar máscaras reutilizáveis ou até sacos plásticos.
Para além disso, acho que o governo deveria adotar medidas mais agressivas do que as que anunciou na quinta-feira passada, porque estas não são suficientes. Há imensos bares que continuam abertos e cheios, sem tomar as medidas de precaução impostas pelo governo. Nesta altura, o que é que os bares estão a fazer abertos depois das 19h?
Já se sabia que não chega apelar ao bom senso das pessoas, não chega apelar ao sentido de "responsabilidade social", não vivêssemos nós num país com uma taxa de abstenção gigantesca. É preciso mostrar às pessoas as consequências das suas ações. Já existem precendentes suficientes para que seja possível mostrar à população quais foram os erros que os outros fizeram, e mostrar também quais foram as medidas que resultaram.